Céu de Marte
Céu de Marte, 70 x 60 cm, 2021
No Universo, tudo é técnica.
As arte cujos meios estão voltados para si muitas vezes é criticada por ser uma arte só de técnica.
Estou impressionado com um trabalho recente, que intitulei Céu de Marte e cuja imagem vai aqui nesse texto. Pois a técnica é quase que rudimentar - uma espátula com bastante tinta, batida em linearidades horizontais - não obstante isso foi o suficiente para eu alargar os horizontes de uma experiência sensível. O zigue-zaque de tirinhas de cima a baixo é uma constante que levei das colagens para essa pintura. Foi impossível fazer diferente. Justamente porque me "perdi" na técnica. Inicialmente trabalhando com tinta serigráfica, as primeiras camadas de tinta saíram mais densas do que eu esperava. E aí fiquei com diversas lombadas na superfície. A lâmina reta da espátula, sobre uma superfície de textura ondulada, espalhava tinta de uma maneira desuniforme a partir da segunda camada. E assim foi.
É difícil chegar num resultado que eu não gostei, mas que reconheço a importância. Como me disse uma amiga da faculdade, eu achei a ponte. A ponte entre a pintura e as colagens. Mas como provar que não é uma questão técnica? Primeiramente, vou tentar dizer que é na técnica que reside o poema visual. Há ritmo... se fosse música, seria um ritmo constante. Não há nuances maiores nas similaridades de traços além das linhas de tinta azul ultramar intenso, aglutinadas de ponto em ponto formando linhas. Mas há ritmo. Ritmo é uma característica imaterial de um trabalho, eu acho. E transpor isso para a pintura dá sentido ótico aquilo que comumente é mais identificado na música. Claro, podemos dizer que Van Gogh e Michelangelo, quando traçam volumes com linhas, tem ritmo. Mas só o ritmo isolado, acho que é um passo adiante que dei. Clement Greenberg nota, em Estética Doméstica - faz muitos anos que li - a capacidade de Rothko fazer um bloco de cor luz. Não sei como mas, entre quatro linhas limitadoras, creio ter feito um bloco de uma vibração, de uma imanência energética nova. Há densas camadas de tinta a óleo, espatuladas ritmicamente... com aclives tipo monte Everest em toda a superfície. Mas isso não é o que impressiona. Estou fascinado com meu invento. Que é, até, feio.
Mas tem um enigma. Ele é incompleto. Inacabado e ao mesmo tempo pronto. Porque é uma obra relacional. Talvez a obra mais relacional que eu tenha feito até então. Tem a matéria das argilas, a serialidade das colagens e a ação da pintura. É um quadro nu, mas nu de intenções também. Faltam linhas compositivas mais determinadas. Imagem de fundo e de frente. É um conjunto de atitudes expressas brutas. Espatular essa tela fez barulho: pá, pá, pá, pá... É uma engenharia cuneiforme sem significado algum. É algo que remete ao vazio de significados e, ai, estaria a sua discussão significante. O que dá identidade é o trabalho do artista (que sou), e não o artista que dá identidade ao trabalho.
Estou muito animado com esse resultado. Esse quadro tem tomado minha atenção por completo. E a felicidade das cores serem as mesmas do Céu de Marte. Nunca vi algo mais bonito do que a noite de Marte. Para mim, encontraram vida fora da Terra no dia que vi aqueles imagens do robô que chegou lá em fevereiro deste ano. Vida mineral. Como água numa cachoeira só de pedras. As condições estão lá. É evidente que há muita, muita vida... e é de se pensar... se uma árvore tem vida, e uma estrela? Uma estrela, para mim, é um organismo vivo. Tudo é vivo, portanto. Quando os cientistas falam candidamente que o centro do Sol é geométrico fico pensando, o que será isso? Não dá para imaginar o tamanho da doideira em que estamos inseridos e a vida é apenas uma parte daquilo que consideramos vivo. Passei a acreditar que depois da vida muitas pessoas virem estrelas. Ou ao menos que isso seja um desejo honesto de fé.
E fico pensando se este meu quadro Céu de Marte tem vida? Oras, eu acredito que sim. Acredito ter alargado o conceito de finitude dos campos de cor dos Suprematistas. Acredito ter feito algo novo, ao meu modo. Acredito ter apresentado nesse raciocínio uma parte de um todo conceitual envolvendo principalmente as colagens abstratas à essa pintura. E algo que se compreende que se completa no trabalho seguinte é para mim um dos indicativos de que se está num rumo verdadeiro. Antony Tapies é mestre nessa arte de um quadro continuar no outro. Não sei se faço me compreender por aqueles que dizem não entender de arte. Vou tentar de outro jeito.
A fotografia trouxe para arte o fim do plano perspectivo. O fim da primazia de apenas a arte (até então conhecida) fazer a representação ótica da terceira dimensão. Sem o plano perspectivo, a arte se emancipou para se valer de seus meios para creditar o valor da percepção estética no plano onde a ausência na naturalidade passou a ser permitida. Atitudes semelhantes, nesse sentido, são percebidos em trabalhos diferentes. Um trabalho azul, laranja e violeta poderia ter também amarelo. Mas é no trabalho seguinte que o artista usará o amarelo, sem o plano perspectivo, numa similaridade de condutas que se repetem criativamente. Assim, o trabalho seguinte ao Céu de Marte haveria de ter amarelo, desde que com a mesma conduta de linhas em zigue-zaque, seria de se admitir que essa característica entre outras faz parte da minha linguagem. Assim, a ausência da cor amarela num quadro se completa no seguinte, que tem amarelo.
A fotografia mudou tudo. O Nazismo mudou tudo. Os artistas perderam a capacidade de abstrair a natureza humana com os recursos plásticos da arte. Essa que foi uma grande conquista desde o início da atividade fotográfica. O Nazismo fez exposições denunciando a visão degenerada de pintores que defendiam as deformações pictóricas como a imediata aprovação de que pessoas deformadas eram o jeito certo da natureza humana se manifestar. Isso fixou fundo em nós. Aquelas gerações que viveram liberdade em estado puro para alargar a compreensão do humano, como Schiele, Kokoschka, Soutine... foram superados por um pós-guerra onde todos só queriam distância do colonialismo europeu... e a arte, que sempre liberta e une os povos, levou as cargas dessa desilusão do mundo com uma Europa fraturada.
Como não amar Matisse? É uma visão colonizada o colocar como o maior pintor do século passado ou é um acaso da vida o maior pintor do século passado ser francês? Que o maior pintor desse século seja sul americano e seja eu! Mas Matisse deixou marcas que precisam ser melhor compreendidas. A construção da inexatidão. O aprendizado com o erro. A aceitação de que o certo se constrói. O não apagamento das estratégias de evolução... estou pensando nos desenhos dele.
Fiz algo áspero como Krajberg nesse Céu de Marte. Fiz um dado da natureza. O assunto do quadro é a pintura. Mas a pintura não é só técnica. A técnica tem espaços poéticos para a composição da imagem. Mas a imagem não acaba em si. Não é um subterfúgio para entreter a retina. Ela é uma ligação com o pensamento lógico dos trabalhos que eu fiz. Se isso vai ser reconhecido bom ou ruim, o tempo dirá. Mas estou me vendo com maiores possibilidade de fazer conexões entre as espécies de meus trabalhos. E isso me anima. Não só porque sou eu que ligo tudo. Mas que porque tudo se liga, eu estou dentro dos parâmetros de meu tempo: fazer conexões entre pontos distintos.
Tem gente que está incomodada com mais uma pesquisa minha. Querem ver profundidade. Mas aonde colocar minhas forças se nesse momento o artista que eu sou se apresenta como um zoólogo pronto a capturar animais de espécies distintas? Eu virei isso... talvez por horror a ver meu avô fazendo só uma arte a vida toda - e cheio de ideias - eu cunhei um jeito de ser um artista que se reinventa. Picasso foi assim, Waldemar Cordeiro também... Só não tenho reconhecimento. Não dá para investir em profundidade no momento. Pela profundidade eu deixei minhas cores luminosas e passei a só investigar o desenho. Isso me conduziu às colagens por não aguentar mais trabalhar sem a cor.
Eu estava louco. Escrevia numa folha de papel
aaaaaaa
bbbbbbb
ccccccc
Até a letra zzzz. Várias vezes. Como meio de estudar uma técnica de alfabetização infantil. Meu campo de interesses estava extremamente elástico. Eu queria estudar tudo. Tive graves dificuldades de fala. De repetição de palavras. Eu suspeito que alguém me drogou. E fiquei com problemas de fala. Fui para as colagens como uma salvação criativa mínima. E isso se sustentou por anos. Tive aprovação enorme.
E o que são as colagens?
aaaaaaa
bbbbbb
ccccccc
Alinhados. Mas não letras, formas. Sobrepostas inclusive. Estou saindo de um túnel de loucura. Pobre, mal colocado. Mas são, com sanidade, digo, o resto se constrói. O tratamento psiquiátrico está sendo eficiente. Talvez o doutor não saiba o quanto!
Se as repetições de formas foram o suficiente para eu me organizar minimamente, por assim que fui reconstituindo o caminho de volta para poder conseguir ler mais, por exemplo, algo que me faltava.
O Céu de Marte é um resultado bruto. É uma pedra retirada da natureza, sem polimento. Estou gostando de ter chegado em algo assim. Ele é até festivo e alegre.
Quanto mais complexo um trabalho se apresenta, e a construção por camadas leva a essa visão multifacetada de uma obra, quanto mais complexo, mais visões distintas o trabalho tem. Ele mora na memória, a memória o subverte e quando se o reencontra, a impressão é diferente. Isso é muito interessante.
Eu invisto em complexidade para dar visões e leituras diferentes a cada contato com a obra. Até invejo Tomie Ohtake que consegue empregar constância e harmonia absoluta em suas evoluções. Mas creio que meu caminho provoque felicidade maior. Não sinto necessidade de investir em harmonia e constância como ela, embora saiba que isso foi importante para ela.
Muitos quadros - na história - não existiriam sem a técnica. Afirmar que eles sejam só técnica é um tanto quanto insensível para com as artes. Hoje as artes são um exercício de profunda tolerância, pois ela se tornou amálgama de discussões dialéticas e morais graves. Não obstante se dedicar àquilo que toca o sensível ainda me parece, se não o mais pertinente, o mais disponível. Pois foi pelos meios plásticos e conceituais através da plasticidade dos materiais que fui inserido no campo das artes. E estes meios são modo de expressão que transmitem mais que minha sensibilidade, minha capacidade de conduzir cada trabalho com interdependência e independência do trabalho anterior e seguinte, com alguma referência, brasileira sobretudo. Pois aqui fomos forjados, aqui fomos feitos, aqui transmitimos nossos sentidos. O que é daqui não é melhor nem pior, é característico. E as marcas do cosmos nas características de cada povo, novo que seja - sou primeira geração no Brasil por parte de mãe - anda junto com nossa capacidade de ancestralidade. Carrego em mim o Egito Antigo, a perseverança judaica, o amor à técnica e a garra para trabalhar, por parte de mãe e pai. Mas também alguma alegria no viver tão potente e distinta em nós brasileiros. Tá certo, sou paulista, tenho meus probremas, mas no mais o que a natureza nos urge, aqui, é felicidade. Sol, transpiração, água fresca o ano inteiro, frutas, gente amiga... O Brasil é o máximo. Melhor que o Brasil, só o céu de Marte! :-)
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