Processo da base luminosa para obras abstratas

 




Tenho uma amiga, Beth, que me hospeda em Pedra Bela, sitiozinho a 1h30 de São Paulo, perto de Bragança Paulista, no início da Serra da Mantiqueira. Lá pude observar e desenhar os aclives e declives da paisagem, numa primeira tentativa de inserir volumes em minhas paisagens. Entre idas e vindas a capital, ela comprou um apartamento e, para celebrar esse novo passo da vida, dei de presente para ela uma colagem.

Estudo de padrões 20 031

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Talvez pelas sombras sob as peças brancas dê para se notar a profundidade dessas peças, sustentadas por EVAs bem altos. A Beth tem irmão formado em engenharia eletrônica e, convivendo com o trabalho, ela, que convive com o irmão logicamente, me deu a ideia de colocar um LED por debaixo de cada peça.

Refleti, refleti e refleti. A engenharia para colocar cada LED embaixo de cada peça seria muito complicada. Não obstante, poder jogar com as luzes sob as sombras me pareceu bastante interessante. Algo meio Júlio Le Parc, meio Abraham Palatinik. A ideia de Beth tinha força, num estado primário do interesse plástico da luz sobre as sombras. Mas também no quê isso mexeria com a percepção da composição pelo público espectador.

Impossibilitado tecnicamente de colocar um LED por debaixo de cada peça, de esconder a fiação, de soldar lampadinha por lampadinha, fui a campo pesquisar como fazer isso. Fui às ruas perpendiculares a rua Santa Ifigênia e lá encontrei soluções prontas de LEDs mais intensos, seriais. Dessa possibilidade vi surgir a possibilidade de, não iluminar por debaixo de cada peça, mas criar campos de luz por debaixo de uma base luminosa para, depois, compor com essa novidade estética.

Tenho algumas noções básicas de elétrica e essas foram suficientes para lidar com um transformador de voltagem e fazer uma espinha de peixe que conectasse todas as linhas de LEDs na base de madeira.
Para afastar o fundo com os LEDs da camada superior - uma placa de policarbonato pintado com tintas transparentes - que estou chamando aqui de base luminosa, fiz tijolinhos de EVA. Para isso colei três EVAs de 1 cm cada, pois foi a medida de distanciamento de refletância que considerei adequada entre a base de madeira e a nova base por cima das lâmpadas. Ou seja, 3 cm de distância entre a base 1 e a base 2, essa transparente, davam o recuo de projeção de luz satisfatório. Isso tudo tem de ser muito bem medido, afinal, esse conjunto vai ser emoldurado depois e quanto mais profundidade, maior tem de ser a profundidade da moldura.

Parafusei a placa de policarbonato sobre os tijolinhos de EVAs de 3 cm e o conjunto que se estabeleceu é o que aparece no vídeo a seguir.

Demonstração de base luminosa


Como aproveitar esse resultado? Na verdade, é um vitral invertido. Suprimir as sombras quando o painel estiver ligado e adicionar as sobras das peças pequenas quando o painel estiver desligado dará uma visão de conjunto antagônico da peça. Com sombras e com luz, mas jamais sem volume.

Será possível projetar cores no ambiente? Que composições já estabelecidas em trabalhos anteriores aproveitar?
Num primeiro momento, a composição que me veio a mente para fazer sobre a base luminosa é uma que tem uma trama de varetinhas entre as camadas da colagem.

Estudo de padrões 21 030

O interessante dessa composição são as varetinhas que se entrecruzam se moverem sobre os olhos do espectador conforme se aproximam ou se distanciam da obra, conforme vão da direita para a esquerda também. Essa composição é feita por 6 linhas de peças estruturais. Seria possível concatenar essas seis linhas com as 5 linhas de LEDs da base luminosa. Como determinar se as peças por cima vão ficar no vazio onde a luz se projeta e se justamente devo colocar as peças transparentes por cima do foco de luz?

Por outro lado, estou fazendo uma revisão dos trabalhos antigos, e encontrei um trabalho, o único, que fiz integralmente com peças transparentes:

Estudo de padrões n.13

Nessa obra, não há tijolinhos de EVA dando profundidade entre as peças. Mas, por outro lado, ele só tem peças transparentes. Então há possibilidade de se usar peças de policarbonato, que é transparente, pintados com tintas transparentes ou, então, usar peças desse tipo transparentes mas também peças opacas. Para dar uma dinâmica de logo do Batman projetado na atmosfera de Gotham City. Por onte caminhar?

Meus projetos se tornaram muito métricos. Há composições mais antigas que, independente da base luminosa, apresentam uma soltura maior de conjunção e sobreposição de peças pequenas com peças grandes numa mesma linha compositiva.

Estudo de padrões n.17

Sem considerar a profundidade que as peças de EVA dão a cada obra que se utiliza desse procedimento, essa obra acima tem ar entre as peças. Iluminar sua base é algo impensável no momento. Mas replicar esse jeito de colocar os triângulos brancos, menores, sobre os losangos rosa choque. Talvez o termo certo não seja ar, mas espaço. Há espaço entre as peças, o fundo branco aparece. Se eu esqueço a construção das varetinhas, terei de arriscar um jogo compositivo que não experimento desde 2014. Mas que me dará espaço luminoso entre as peças. Posso fazer isso com profundidade e opacidade das peças de EVA, que parecerão coluninhas entre cada sanduíche de peças. Mas posso fazer também sem elas.

O conforto de repetições seriais e criativas me conduziu até os abstratos. Havia, na época que comecei a fazê-los, muito espaço institucional para o concretismo em São Paulo. E isso me causava desconforto e insatisfação. Precisei expressar meu respeito às instituições, mas sem declinar de minhas intenções expressivas, fiz o meu neoconcretismo. Por quê isso se tornou conveniente na linha de pesquisa dos trabalhos figurativos? Eu estava sofrendo pela supressão das cores nos desenhos sobre tela. As formas geométricas estavam, por outro lado, se evidenciando nas composições das versões - pinturas que fazia observando desenhos - onde a geometria imperfeita da perspectiva observada cada vez ganhava mais espaço.

Em Abstrato, de Mel Gooding, ele diz que quando a arte abstrata, provavelmente nos anos 20, na Rússia, se propôs atravessar as linhas do campo visual e estabelecer uma faixa que se estendesse de lateral a lateral do campo visual, aquilo foi uma conquista de pertença ao campo abstrato decisivo. Que abriu diversas possibilidades para os artistas do futuro. Algo tão simples eu tinha de experimentar também. Mas, dentro de minha necessidade de complexidade artística. Por veneração aos Metaesquemas de Hélio Oiticica, procurei fazer minhas sequências de trapézios irregulares. A primeira tela deixei assim. A segunda, não me segurei e apliquei, sobre a primeira camada de trapézios, triângulos pontiagudos. Mas a primeira tela, de uma camada só, foi uma tentativa de encontro a algo entre o concretismo e o neoconcretismo. Para o meu entendimento de uma arte que se mostra, no meu fazer, sempre complexa, era o desafio resolver a composição numa camada só. Foi num caminhar lento que passei a fazer mais e mais camadas para, então, experimentar a tal faixa de linha que atravessasse todo o visual como um russo fez no passado de maneira decisiva.

Disruptivo

No quadro Disruptivo eu passei a abandonar a sequencialidade de formar em linhas. A semelhança entre colagens e pinturas se rompia. Até então havia uma semelhança:

Estudo de padrões n.3

A prevalência de peças sobre um anteparo uniforme havia me conduzido até então. Eu queria experimentar algo diferente do trabalho de observação. Eu queria ler todos os livros da série de movimentos históricos que a Cosac Naif publicara e que estava em todas as livrarias. Mas comecei as leituras pelo livro de Mel Gooding para tentar entender o Concretismo, que estava presente nos museus. Experimentar algo diferente era o meu jeito de me experimentar na arte. O período de Ilhabela entre 2004 e 2012 foi de muita solidão. De volta a São Paulo algo aconteceu que passei a me comunicar mais com as pessoas e logo a aceitação de meu trabalho passou a ser maior. Sobretudo dos trabalhos que eu estava fazendo no momento. Trabalhar com a aceitação do público foi algo decisivo para eu me empenhar em algo que as pessoas entendiam e identificavam como diferente, novo, autêntico. Essa comunicação se tornou um fio condutor, junto com a possibilidade de voltar a trabalhar com as cores, a exacerbação do volume, que sempre me atraiu, um jeito de estender o impasto de Van Gogh a outros ramos de pesquisa mas, também, dos volumes escultóricos de boa parte da produção plana da Antiguidade. Fazer uma arte que se relacionava com o velho e com o novo me atraiu em continuar com as colagens como um caminho preferencial. E, ainda, de flexionar e organizar os esforço de relevo e inconstância constante que Arthur Luis Pisa investigava em suas gravuras e composições volumétricas.

Trabalhar com referências brasileiras me animava e encontrei em Palatinik, Pisa e Oiticica a serialidade que me aproximava da matemática organizada de maneira orgânica. Apenas para ilustrar o tamanho da ruptura, apresento o que eu estava fazendo no momento anterior a primeira colagem:

Casa do Horácio e da Marion angulo 2 versão 1

Abandonar o caminho do desenho, que nunca teve comunicação e empatia com o público, me pareceu libertador. Por outro lado perdi o instinto de investigação sobre o novo que aparece em cada tema novo figurativo pronto para ser abstraído e representado pelo artista. Essa valentia de lidar com o novo me faz falta. A previsibilidade criativa das colagens foram importantes para mim. Mas retomar a descoberta e a reinvenção sobre a interpretação e reinterpretação de um mesmo tema, respectivamente, me fez rever forçar da investigação da energia que eu encontrava em mim a cada desafio novo. E, assim, emprestar para o público esse percurso de êxitos e insucessos na representação figurativa, onde o insucesso em ser verossemelhante é, na maioria das vezes, o espaço da abstração figurativa, me fez retomar, agora em 2020, o espaço figurativo. Para, em pequenos projetos, de 5 em 5 unidades, ou de 3 em 3, fazer conjuntinhos de obras que se comunicam com o meu momento de artista.

Ipês amarelos em flor, 2020


Há familiaridade de propósitos nesses conjuntinhos. Mas não os penso como trípticos. Mas mais como ideias de idealização poética que se aglutinam para fazer o caminhar se manifestar de maneira plural e dinâmica para, em cada obra, manifestar uma potência de intenções que se complete no trabalho seguinte e seguinte. É sofrido esse processo de deixar a obra inacabada. De não completar um sentido de acabamento plástico ou de acordo com a realidade no caso dos trabalhos figurativos.

Mas talvez seja nesses espaços que o envolvimento do público se manifeste. Se compreender da onde vim e para onde vou. E nesse fluxo proporcionar prazer de pesquisa compartilhada que a arte permite a cada artista vivo que queira se aproveitar desse expediente de inacabamento da obra para se refazer, sempre de maneira incompleta, a cada trabalho novo.

A novidade está no encontro do artista com a dificuldade seguinte, que ele seleciona e manifesta com suas habilidades e deficiências, mas sempre com a intenção de acertar, de corrigir, de exprimir, de melhorar, de analisar, de compreender aonde estão suas forças. A novidade não vem do mundo, mas do sistema que um artista estabelece enquanto suas engrenagens de investigação plástica.

Por que essa investigação plástica é importante para o mundo? O mundo não existe. Existem pessoas. Existem pessoas que fazem o mundo. Essa ciência subjetiva que o trabalho plástico manifesta é um estado de graça. É supérfluo, alguns diriam. E por ser supérfluo, não é mais artístico como no passado era, alguns diriam. Seria supérfluo não apenas no sentido de mercadoria, como alguns dizem, mas de irrelevância social. Agir assim, sobre a desnecessidade discursiva da objetividade dos fatos, é uma aventura da vida como a vida é uma aventura. É um encontro de manifestações que se completam em si. A sequência lógica e investigativa, a conexão e sintaxe de um percurso particular é um campo de interesse. Não é a construção de um arquétipo como o ideal de homem sensível do cidadão do mundo de Baudelaire ou de novos homens da atualidade, construções que se esperam de alguns artistas contemporâneos. É apenas um trabalho investigativo e documental que estabelece um artista em relação ao passado de referências comum a todos com sua capacidade de estender a corda e dar impressões energéticas sobre o tempo presente. E dessa identificação de energias com o tempo contemporâneo expressar, eventualmente, uma sintonia de sentimentos inesprimivel e inverificável mas nem por isso menos verdadeira entre artista e público. Onde não apenas o artista identifique quem ele era num determinado momento do tempo, mas lembre de suas emoções, preocupações e sentidos. E empreste para o público esse vínculo comum com a realidade subjetiva. É, também, portanto, um esforço de construção e identificação de memória afetiva coletiva. Esse jeito de ser artista, comum a muitos artistas do passado, é um campo de conhecimento. E a matriz desses referenciais ser plásticos não significa necessariamente de uma busca da arte pela arte. Mas da arte expressa pela arte enquanto vínculos com a realidade subjetiva da coletividade. Quando o público faz parte e tem voz no processo de pesquisa por meio de blogs, grupos de zap, a expressão do movimento de ateliê compartilhado nas redes sociais, o contato da obra em feira livre, o olhar do público diante do artista move e transforma o meu fazer. O olhar do outro é um risco para o artista. Mas também uma oportunidade maior de tocar o seu coração. Pois, no fim, a tocha está e estará sempre nas mãos do artista que conduz sua pesquisa assim.



Nuvens sobre rosas e ipês

Primeira colagem abstrata. 2012














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