Nando X

Uma vez estava vendo uma seleção de obras de meu avô e apareceu um retrato imaginário, um rosto feroz pintado em vermelho e preto, manchas formando um ser de face vigorosa. Lá se apresentou para mim a grande capacidade de inventividade suprimida de meu avô. Não sei com quê senso de justiça, ou injustiça, julguei ele como o pintor dos fantasiados. E suas pinturas de mesmo tema foram decaindo. É feio julgar um parente, mas o julgamento vem. Hoje fico pensando que ele poderia ter aderido às alegorias dos carnavais dos anos correntes, homenagear a Vai-vai, Gaviões, etc. Entrar no tema de seus sambas enredo. A questão da mulher e do feminino na arte... não, ele investigou uma poética própria de símbolos com significados próprios. Talvez seja uma tendência dos artistas da família de se voltarem para dentro. De não irem para o mundo. Meu tio ficou "preso" a São Paulo noturna, do Centro histórico da cidade. São Paulo já se repaginou tanto... Temos a São Paulo da Av. Vereador José Diniz, da Vila Madalena, da av. Faria Lima, tudo isso passou despercebido por ele. Como numa viagem de Pink Floyd, ele ficou na dimensão humana da solidão em espaços domésticos, o homem sozinho na cidade vazia. A mulher sozinha num ambiente doméstico... Ele até experimentou fazer uma homenagem ao cinema, como em "Bodas de Sangue" de Saura, mas ele poderia ter experimentado Blade Runner, Labirinto ou História sem fim... Ou mesmo o Cinema Novo. Já meu pai tem uma capacidade de invenção ilimitada, mas por diversos motivos, trabalha pouco. Mas houveram épocas em que era comum chegar em seu ateliê e ver uma coisa totalmente nova. Não esqueço desses momentos de vida onde sua criatividade plástica, na escultura, se expressava com força e desenvoltura.

Mas meu avô foi o leão da família, e vê-lo enjaulado a um estilo me marcou profundamente. Sucesso, para mim, não era aquilo. Embora tenha feito MUITO sucesso. E observando artistas como Antony Tápies, Waldemar Cordeiro e Gerárd Richter fiquei pensando em como ser um artista de mil faces. Como estabelecer uma trajetória inventiva. Bom, o próprio amigo Odires tem uma capacidade de reinvenção plástica extraordinária.

Desde a pandemia, e aos estímulos de criação e compromisso com as artes da faculdade, comecei a fazer a um só tempo meus experimentos de muitos anos. Estou fazendo paisagens, retratos, naifs em pinturas e esculturas, colagens abstratas, colagens com figuras e novidades estão surgindo: colagens 3D numa caixa, esculturas cilíndricas... Isso de dois dias para cá. Além de desenhos de paisagens, desenhos de retratos, gravuras de temas naifs.

Estive com o João numa galeria em busca de uma artista, Jandira Waters. Galeria Mapa. E lá o galerista nos mostrou diversos catálogos de artistas entre as décadas de 1940 e 1980. A linearidade de raciocínio é impressionante. Ter um raciocínio maduro, que se transforma sobre uma mesma sintaxe... oras, talvez seja o que eu esteja fazendo com o leque um pouco mais aberto. Com um eixo, do leque, que é visível para alguns. Mas a outras pessoas talvez pareça que estou atirando para todos os lados.

Estou consolidando o que é ter uma obra com ritmo, musicalidade, serialidades, paleta cromática própria, traço próprio nos desenhos e pinturas de paisagens. Referenciais brasileiros em todos os casos, eu acho, de fazer algo alegre, quase festivo, que celebre a vida de modos que o receptor da mensagem nem saiba como.

Talvez aí exista um descompromisso com a arte que está além das questões de mercado. Da arte que está acima do consumo. Mas vejo o consumo tão ordinário como contemplador de formatos de abundante incidência de criatividade. Nas artes, quer-se fazer cinema sem ingresso. Para mim tudo bem se tiver ingresso para os "filmes" que eu faço. Estou mais preocupado se será humor, romance ou terror.

Não sei se a metáfora está clara. Mas estou encontrando um filão de possibilidades de me dedicar a diversos estilos e para mim isso é liberdade.

Raramente meu pai escrevia frases nas paredes... uma delas era: a desidentidade é o suprassumo da personalidade.

Talvez eu esteja experimentando ser um artista sem identidade para testar meus níveis de personalidade. Ou então, numa época ciosa das questões de identidade, a minha arte seja o corpo de uma ausência de incidências afirmativas de expressão. Digo, de definição de expressão. Cada caso é um caso. Cada obra tem seu sabor, seu desafio, sua compreensão e incompreensão.

Me vejo respondendo a desafios tão simples quanto notórios no meu entendimento daquilo que me agrada ou incomoda na história da arte. Não gostava do Concretismo, fui fazer a minha crítica - não o meu neoconcretismo - mas a minha visão de como as coisas poderiam ser mais sensuais. Me agradava o artesanato pernambucano, fiz minha versão planificada em azulejos, com meus temas, abordando um jeito próprio de compreender as fábulas visuais, o meu imaginário.

Não dá para escolher um caminho quando vários caminhos se apresentam com facilidade de fluxo criativo. Procuro valorizar o momento de cada expressão. Procuro fazer um pouco de tudo que sei fazer, para ficar com o raciocínio cognitivo aquecido para fazer o melhor no tipo de abordagem que se apresentar. Pode ser que isso tudo se consubstancie numa vertente única, pode ser que eu vá parcimoniosamente me expressando como um polvo mesmo. Ainda que isso desabone uma linearidade discursiva.

Acredito que estou subvertendo a noção de tempo. Não há mais um caminhar... a fase dos desenhos sobre tela, a fase das colagens, a fase das pinturas abstratas... Estou fazendo tudo ao mesmo tempo. Não há várias bandeiras numa mesma sala pública? Então, conquistei bandeiras que posso usar todas à mesma época. E os desafios ainda existem. Eu ainda preciso me esmerar em ser um retratista melhor, por exemplo. O treino leva ao encontro de espaços de insatisfação, de inabilidade. Mesmo o sucesso gera uma necessidade de ócio inquietante. Ter outra vertente para se dedicar é, no fim, uma área de descanso para os momentos de vitória ou derrota. É um caminhar de passos para frente e para os lados, e as vezes até passos para trás.

Como transformar o insucesso numa dança?

É curioso porque justificar-se descredencia o artista de ser artista. Ao mesmo tempo algumas pessoas buscam uma coerência naquilo que elas observam. Uma pessoa viu paisagens com chão vermelho e outra paisagem com chão azul. E me falou: se você definir um estilo é melhor. Hoje outra pessoa me perguntou: mas por quê você faz céus rosas? Eu não tenho respostas, eu tenho cartas de liberdade que os outros artistas escreveram e eu simplesmente as li. O colorido é uma incidência do acaso. Eu não decido se não no momento da pintura, quê cores colocar numa tela. Se terá chão azul ou vermelho, é quase uma diversão do acaso. Descobrir o que o tempo vai me revelar, ocasião por ocasião, é um dos valores que me mantém ativo diante do mistério da revelação da sessão seguinte de pintura.

Estou reencontrando meus valores de estímulo... o super colorido das paisagens, o trabalho com a densidade da argila, o desejo de resolver bem um rosto de uma pessoa. O exercício do desenho de observação das paisagens. As vezes eu nem penso mais se eu gosto ou não gosto do que eu faço. Eu deixo para julgar isso depois do tempo.

Era sádico, no passado, eu pensar em ser um artista melhor que meu avô. Mas depois vi que era uma necessidade. Que fazer isso seria um modo de honrar sua incrível capacidade de inventividade. A criação é a liberdade do artista. Ainda me vejo como um plano de artista. Coisas extraordinárias ainda não aconteceram na minha capacidade de engajar mais gente, para me dar mais crédito em projetos maiores. Pode ser que isso venha, pode ser que não. Não sei pensar grande, nem sei pensar pequeno... apenas penso. A minha dimensão é a dimensão de meu braço, de meu corpo. Fazer algo maior do que isso seria de um relacionamento com o espaço maior que o espaço que eu compreendo e ocupo. Não me vejo pintando uma tela grande como Paulo Pasta. Se um dia surgir oportunidade e ocasião, eu nem sei o que faria!

Provavelmente é erro meu não pensar grande, ou me esforçar nada em pensar uma arte não monetizável. Arte e consumo dão ojeriza em muitas pessoas. O fazer para vender. Eu faço. Se é produto, é outra história. Ou um cachorro pode esquecer de ter cabeça e quatro patas ao mesmo tempo? Arte é um corpo no mundo que tem seus significados. O significado de mercado é inerente. Não me incomoda que alguém compre. Pelo contrário, o comércio é uma ponte de comunicação entre o artista que sou e a pessoa que escolhe um trabalho meu. É verdade que essa comunicação pode não ser monetizável. Mas até fraldas de bebês tem preços!

Os editais já dizem que tipo de arte querem: arte e tecnologia para a 13a Bienal do Mercosul; arte política para o CCSP, arte não binária para o 67o Salão Paranaense. Criar um dicionário de nomenclaturas não agressivas para uma residência artística numa instituição polonesa... E ainda se tem que pensar em arte não monetizável? Se o desafio fosse apenas esse... mas ainda tem de se pensar o perfil do local que requer um tipo de arte assim. É muito difícil. É mais fácil entender que esses editais são filtros com demandas de afirmação da instituição do que um legítimo certame de propostas artísticas que apenas dialoguem com o público, sem que aja um preço ou um lugar outro para isso.

É chato ler um edital e esquecê-lo. "Ah, esse não é para mim". Mas é assim que tenho encarado. Preencher um formulário leva, as vezes, duas sessões de 4 horas cada. Vale a pena, se o perfil não bate? Estou pensando que não. Nem um pouco. Me falta energia intelectual para lavar a louça. E vou me desdobrar para fazer uma proposta de arte e tecnologia de grandes dimensões com uma verba "extraordinária" de R$ 10 mil para ir até Poá várias vezes para montar, desmontar e palestrar sobre uma proposta? Não tenho e não sei se quero ter esse preparo. É triste dizer isso. Pois há artistas muito competentes para isso. E não me vejo com esse perfil de competência quase que para nunca. É um futuro improvável para mim... incluir um projeto de arte-educação num projeto de arte. Comecei a pensar assim quando vi um edital que dava R$ 60 mil para se pintar um painel numa estrada rodoviária em Goiás. Dimensões da obra: 45 metros por 6 de altura. Não era para mim. Tem dias que eu não aguento ir caminhar no parque, imagina ir até Goiás para fazer um painel?

Hoje fui com o João na exposição do José Dasmasceno na Estação Pinacoteca. Diversos trabalhos não monetizáveis mas monetizáveis ao mesmo tempo. Quase tudo que estava lá poderia ir para coleções.

É muito difícil para mim, que sou um artista do fazer, saber como ser um artista do pensar. São naturezas de raciocínio que não me habitam.

Fui numa exposição da Sandra Cinto no Itaú Cultural. Fizeram uma análise de processos dela. Em uma folha de papel ela escreveu cinco ou mais pequenas frases que definiam cada projeto com clareza. Eu não sou assim. Eu recusei o pensamento das instalações, quando elas estavam em voga e eu era adolescente. Eu não entrei na toada. Jesus fala que quem não respeitar o Espírito Santo, será deixado para traz. Será que eu negligenciei o espírito de minha época? Eu estava me comunicando com Gauguin enquanto isso. O bonde passou e eu estava com o fone de ouvidos fazendo meus cálculos sobre como atingir o mundo com uma linguagem do passado.

E estou nisso até hoje. Elogios vem, mas reconhecimento e aprovação, não. A história dificilmente dará um looping e dirá que eu estou certo. Por uma razão bem simples: hoje há muitos jeitos certos. E estou lutando para que o meu jeito também seja aceito como certo. É incomodo, no entanto, para mim, uma visão persistente de que apenas a inovação confere atualidade à um trabalho. As artes estão aceitando fusões com muitas outras áreas de conhecimento, de modo que são inaugurados novos e novos gêneros artísticos quase que todos os anos. Mas a pintura ainda existe. Fazer uma pintura nova é o desafio. Morandi é novo até hoje. Michelangelo, Djanira, Frank Stela são novos até hoje. O desafio é entender as regras do passado, que são a realidade dos fatos da arte, e aplica-las sobre as luzes sentimentais do presente. Com intensão ou não, haverá impressões sentimentais. O artista é um filtro, um termômetro do mundo. Mas tem gente que deduz que por ser algo já feito - a pintura - não precisa ser feito novamente.

Oras, a invenção está justamente no refazer!

Cervantes inventou o romance, nem por isso deixou de existir teatro. Falta humildade ou, dito de outro modo, sobra senso de oportunidade a esses artistas que estreiam gêneros. É admirável que façam o que façam. Mas deixar para trás outros gêneros, como a pintura, é difícil de entender. Damien Hirst agora está pintando como nunca. Outro artista mutante como eu quero ser. Não como ele, quero ser como eu sou. Mas mutante, sim. A diferença é que em seu aquário há tubarões e, nos meus, imagens que as pessoas confundem com tsuros (pássaro japonês de origami, simbolo da sorte, desde que você faça 1 mil de uma vez!)

Estou feliz com meu percurso mutante. Não faz 10 meses que estou nesse espectro e há quem me diga para fazer escolhas. Não vejo o que deixar de lado. Mas pelo contrário, ser um mestre da mágica que faz tudo numa mesma apresentação. Mas me preocupo onde vou me encaixar.

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