Exercício 2 parte 4

 

Fernando E Correia

Filosofia e Estética

1)   analise o conceito da catarse na Poética de Aristóteles, tal como exposto no capítulo 6 desse livro, posicionando-se criticamente sobre o texto.

Aristóteles diz que (35)“A tragédia é, portanto, a imitação de uma ação, e acima de tudo, em vista dela, é a imitação de pessoas agindo”. Nos diz que pode haver tragédias sem caracter. Entendo por caracter a qualidade intrínseca das pessoas. Isso porque o interesse da tragédia é a imitação de ações, não de pessoas. Até pode haver caracter, mas mais ações é que é o importante. Ainda diz: (30) “ideias, refiro-me a tudo aquilo que os personagens dizem para manifestar seu pensamento” e (36) “Ideias são aquilo que demonstram que alguma coisa é ou não é, ou que expressa algo genérico”. Ainda no (36), diz que “as ideias (da poesia trágica) que nada mais são do que a capacidade de dizer, sobre determinado assunto, aquilo que é inerente ou conveniente” e que “Caráter é aquilo que revela determinada deliberação”. Portanto temos ações que podem manifestar aquilo que é inerente, conveniente ou ainda que expressem deliberações. Se eu redigisse agora uma tragédia que abordasse o tema do aborto, eu estaria despertando piedade e temor pela condição da personagem principal, a mulher grávida, que fica com a indagação sobre fazer ou não um aborto. O caracter pode ou não pode se manifestar pelas razões do aborto: se foi estuprada, se a criança está sem feto, se a saúde dela está em risco, se o pai da criança é pobre ou rico, isso tudo pode estar expresso na tragédia ou não. Mas a ação dela de entrar na sala de aborto é uma manifestação que revela uma deliberação ou seja, um caráter e acima de tudo uma ação que manifestará a continuidade ou interrupção da vida de alguém. Se o dilema da moça é ter um filho ou não com um homem rico, o bastidor da tragédia revelará ideias que demonstram se uma coisa é ou não é. Embora a ação principal seja revelar uma ação, uma das ideias é verificar a capacidade de investigação, por meio de uma gravidez, as riquezas de um rapaz: ele é ou não é rico? Ele aparecerá para impedir ou para acompanhar o aborto? Isso revela o que é inerente ou conveniente, ou seja, uma ideia. A presença do pai da criança pode apresentar ações no sentido da interrupção do aborto, sem manifestar seu caracter, digo suas qualidades. Podemos ficar, ainda, sem saber se ele é rico ou pobre. Assim, a catarse que desperta piedade pode ter essa piedade oscilando entre o personagem feminino e o masculino: o que é cuidar de uma criança sem recursos? Mas também o temor: há pessoas que engravidam sem saber do destino de seus parceiros e, assim, precisamos ficar atentos as preliminares dos relacionamentos para evitar que algo indesejado aconteça mais para frente.

Digo isso tudo pois o capítulo VI começa com a frase (27) “A tragédia é a representação de uma ação elevada, de alguma extensão e completa, em linguagem adornada, distribuídos os adornos por todas as partes, com atores atuando e não narrando; e que, despertando piedade e temor, tem por resultado a catarse das emoções.”

É por meio das falas que as personagens manifestam imitações de ações humanas. No entanto, na poesia moderna as pessoas não narram como na poesia antiga, mas sim oram.

Fábula é a (30) “a reunião das ações”. Então o clímax pode ser a deliberação de entrar ou não entrar na sala de aborto. A fábula é, portanto, condicionada a duas partes antes e depois do clímax. Se a peça se encerrasse após a decisão de fazer ou não o aborto, poderia se investigar as ações precedentes como o naco do conjunto de ações que levam a uma decisão principal: fazer ou não o aborto. Se a peça continua, ela pode revelar uma defesa ou condenação da ação principal. Se a mulher não faz o aborto, a piedade pode se estruturar na concepção do casal enquanto formador de uma nova família dadas as condições de riqueza do casal. Pode-se citar o nascimento na manjedoura do menino Jesus para dizer do que é conveniente sobre a pobreza, pode-se aumentar o temor a personagem feminina ao mostrar, por outro lado, que ela só queria se aproveitar da riqueza do rapaz; manifestando assim outra condição de pensamento da personagem principal: o sequestro de uma vida (por meio de uma gravidez, a vida do feto) para o benefício material da geração atual, de si mesma, digo. Isso despertaria ainda mais o temor na segunda situação, ou a piedade na primeira situação. Adicionando catarse às emoções do público.

Portanto, mais que ser a favor ou contra o aborto, uma peça tem o potencial de desmembrar um série de pensamentos em torno da ideia e do valor da concepção humana. Suas implicações práticas presentes e futuras. E às práticas também passadas, afinal, como aquele casal se formou? Poderiam vir, ou não, respostas durante a peça.

A peça também poderia mostrar o contrário, ou seja, que a mulher realiza o aborto. Em Sófocles, O Édipo Rei desperta o terror por meio da manifestação de uma série de terrores que a população sofre até que aparece um Oráculo que tenta identificar as causas de tais tragédias na comunidade reinada por Édipo. Há, assim, uma causa de presente que investiga o passado.

Se a peça que estou manifestando mostrasse um casal feliz no caso de não fazerem um aborto, ou de um casal que se desfaz e cada um segue uma vida libertina, ai poderia se estar manifestando, pela fábula, isto é, pelo conjunto de ações, uma ideia de que o aborto é ou não benéfico ou mal vindo às pessoas que o praticam ou recusam. É bom ou ruim ser libertino? A peça não diz. Seria a ausência de caracter para manifestar a expressão de uma ideia genérica de que a realização do aborto favorece a libertinagem. Ou se o casal não faz o aborto e passa por muitas dificuldades financeiras: a expressão, por meio da catarse do temor, de que ter um filho em condições adversas significa a própria razão de se fazer um aborto nas vidas reais e assim, pela recusa do aborto na tragédia, se enfatizaria sua necessidade na vida real.

São manifestações de pensamentos que revelam conjuntos de ações que num jogo de piedade e temor vai-se esvaindo as emoções do público para o direcionar a conclusões íntimas e verdadeiras.

Não sei se o bom dramaturgo é aquele que expressa as deliberações que as personagens tomam como exemplo para o público, ou se melhor é o dramaturgo que deixa o público pensar por si mesmo qual é a melhor atitude. No entanto aborto é um tema tão relevante na sociedade que penso que direcionar ou não a opinião do público são decisões muito difíceis de uma pessoa escolher. E acho impossível nesse caso em que criei, o dramaturgo imaginário ser neutro em relação ao tema, por mais ambiguidades, temores e piedade que a peça pudesse despertar nas pessoas.

Achei impressionante quando Aristóteles diz que (32) “Assim, segue-se que as personagens, na tragédia, não agem para imitar os caracteres, mas adquirem os caracteres para realizar suas ações” “Desse modo, as ações e a narrativa constituem a finalidade da tragédia e, de tudo, a finalidade é o que mais importa”.

Em Teatro do Oprimido, Augusto Boal diz que a finalidade das tragédias é antecipar acontecimentos na vida das pessoas para instruí-las a não cometerem os mesmos erros das personagens.

É difícil imaginar, então, que uma tragédia influencie o aborto para se chegar a uma vida libertina. Antes me parece mais conveniente e inerente usar a investigação sobre o caracter das personagens para presumir as ações que se seguem ao aborto ou não aborto. Acho muito mais importante oferecer ao público o temor do momento de estabelecer uma relação ou uma concepção – afinal, a escolha, presume-se, é dos dois – do que a piedade por uma vida libertina. Soaria muito estranho. Digo isso pois há pessoas na sociedade que incentivam o aborto pela prerrogativa de que assim haveria mais “sexo livre”. Logo, mais beleza.

A experiência da elaboração desse texto me despertou a grande responsabilidade que é apresentar um conjunto de ações. A tragédia ficcionada nesse exercício apresentou-se como uma expressão de ação elevada por modéstia a parte, fazer uma investigação moral fina no público. Apenas gostaria de dizer que constatei que se trataria mesmo de uma tragédia e não de uma comédia. A piedade por libertinagem seria uma ação baixa, seria uma comédia, certo?

Ainda gostei do trecho:

(32) “O mais importante é a maneira como se dispõem as ações, uma vez que a tragédia não é imitação de pessoas, e sim de ação, da vida, de felicidade, da desventura; mas felicidade e desventura estão presentes na ação, e a finalidade da vida é uma ação, não uma qualidade.”

Fazendo um posicionamento crítico, acredito que não fiz isso até então, vejo como interessante se pensar que a finalidade da vida é uma ação. Toda vida acaba. No entanto tem momentos da vida que revelam sim felicidade ou desventura, mas de que maneira isso poderia influenciar o término da vida? A ausência dessa preocupação revela um gosto de Aristóteles pelas ações presentes e uma despreocupação interessante sobre o fim da vida. Pois no caso do aborto, tem gente que diz que vai para o inferno quem o faz. Mas os impactos de fazer ou não um aborto se manifestaram mais como uma ação de vida, pelas consequências práticas na vida das personagens e seus destinos, do que um questionamento sobre a dívida e o temor futuros, para depois dessa vida, que as personagens teriam no caso de acolherem a opção do aborto.

Posicionamento crítico: acho Aristóteles sucinto demais ao dizer no parágrafo (27) que ações despertam apenas piedade ou temor. Por outro lado, é interessante que ele expresse assim. A definição de catarse como a expressão de ações e não de narrações talvez represente uma dinâmica de falas mais própria do teatro tal qual o conhecemos. Não sei como era antes. Mas se era narrado, talvez se assemelhasse mais a um discurso onde a elaboração dos caracteres dos personagens, suas ações e fábula fossem prejudicadas. Me parece que Aristóteles busca organizar e fundar o conceito de tragédia moderna e assim o faz com competência extraordinária em todo o livro, essencialmente no capítulo VI onde especifica as seis partes da tragédia: fábula, caracteres, falas, ideias, espetáculo e canto.

FIM

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