Projeto Monstros do Sul

 O que leva uma cultura a criar uma rede de mentiras para que o progresso fique estacionado?

A proposta é fazer esculturas dos monstros marinhos que europeus desenhavam para persuadir seus marinheiros a não embarcarem nas grandes navegações, nos séculos XV e XVI. Ambientar essas esculturas no fundo de uma piscina, na galeria Auroras.

Muito se diz hoje sobre a quem pertence às Américas, se aos indígenas ou se aos colonizadores. Mas antes destes virem para esse lado do Atlântico, muito foi dito para se evitar que tal feito fosse alcançado. Os espanhóis, ao contrário dos portugueses que lançaram ao Brasil uma ampla comitiva náutica, enviaram para as Américas apenas três embarcações. Tão improvável era o sucesso da missão de atravessar o oceano em busca de novas terras ou da Índia. Assim como a literatura trovadoresca fantasiava sobre heróis capazes de atravessar os feudos em segurança, os únicos capazes disso, também se fantasiava sobre o Atlântico como habitado por seres devoradores de barcos.

Hoje em dia não temos as fantasias de dragões e super homens capazes do impossível, mas também vivemos uma época de notícias falsas que criam uma rede fantasmagórica sobre onde estará a verdade. Essa, cada vez mais permeável às narrativas de lado A, B, C, D ou Z.

Instigar o medo no outro para que o progresso estacione, retroceda, para suscitar ódio onde antes havia neutralidade ou alienação, cria uma rede de informações monstruosas onde as tendências de julgamento se apresentam antes dos fatos serem acontecidos.

O incrível é que os registros dessas estratégias de dominação – sobre as forças dos, posteriormente, colonizadores – estão presentes até os dias de hoje e não serão facilmente apagados. Imaginem se daqui a alguns anos disserem que anos-luz se percorrem em horas de viagem espacial? Haverá registros científicos extensos sobre o inatingível tempo de viagem interplanetária atual. E ninguém que eu saiba se interessa por saber como funciona um velocímetro espacial. Apenas dizem que Einstein previu os túneis do tempo no espaço. Quem sabe se Marte não é logo ali?

Nossos monstros e fantasias se dão, atualmente, por redes de informação. Não há mais a necessidade da imagem para uma população amplamente letrada. As estratégias atualmente são outras.

Por outro lado, a psicanálise trouxe a dimensão do tormento, da possessão como perturbações inerentes ao indivíduo (ou aos indivíduos que sofrem ou exercem esses distúrbios). É comum mentalizar-se a figura de fantasmas – por serem ausentes, ocultos - mas monstros também habitam o imaginário das pessoas comuns. Conviver com aquilo que é monstruoso é uma das características constantes da existência em tempos difíceis. E talvez por presenciarmos visões literais das monstruosidades existenciais: o separatismo, feminicídio, dependências químicas, etc; a imagem dos monstros, a imagem do diabo se ausentou dos tempos em que vivemos.

Oras, vivemos sobre dimensões perturbadoras. Somos apenas espíritos humanos vivendo num ambiente muitas vezes inumano. As bestas e os anjos fazem parte da mesma atmosfera celeste onde somos seres menores. Viver sem a proteção divina, para muitos, é possível. Mas ignorar que a existência das tragédias, assim como a da bondade, ambas as dimensões as quais estamos inseridos, é inútil. Pois participamos de dramas e bem-aventuranças todos os dias, por ação ou não de cada um de nós.

Uma piscina seca. Uma casa com piscina, sem que ela funcione. Que casa é essa? Como preencher essa piscina? Com ratos ou com fadas? Uma casa com a piscina ausente é uma casa complexa? Existirão ai fantasmas? Fantasmas são irmãos dos monstros e reviver um cânone da contra-cultura medieval seja um jeito de contar mentiras que as pessoas sabem que são mentiras. Sob essa luz, abrir a consciência individual: eu sei o que é e aonde está a verdade (dessa situação).

Uma piscina vazia é o próprio ambiente do acender de luzes simbólicos para seres aquáticos perigosos e imaginários. É encontrar, no ambiente em que os monstros viveriam, suas imagens daquilo que eles não são, justamente por serem fantasias. É a ilustração encontrando o ambiente que ela, simbolicamente, narra: a água vazia. Ou melhor, o recipiente da água sem ela. Como não dá para esvaziar um oceano, a piscina é símbolo do habitat que a ilustração narra e carrega.

A base de referência é, portanto, imagens de seres inventados para assustar. É uma ressuscitação da memória de que o colonizador, antes de ser isso, era reacionário consigo mesmo. E que foi preciso vivenciar a experiência de cruzar um oceano para constatar que aquelas imagens eram ilusões. Assim como pode ser ilusão que a viagem daqui até Marte dure 6 meses.

O ambiente é o território semelhante ao de um País baixo, é uma piscina vazia. É como se fosse um cérebro por onde passam imagens do desassossego.

O meio é em referência ao que a pesquisa atual de tantos artistas diz por fatura pictórica. A fatura é abolida pelo lugar da massa, da massa cerâmica que discursa identidades monstruosas por meio do alto e baixo relevo. É a matéria da piscina – a cerâmica – discursando dentro da piscina. São placas de argila que simulam lajotas. Não apresento a massa dos incríveis Rodrigo Andrade, Ana Sário, Guilherme Ginane ou Maurício Adinolfi. Ou os borrões de Eleonora Koch, Nilda Neves, Dan Lanes, Lucas Arruda, Jaider Esbel ou Alexandre Wagner; mas a massa, essa, que tanto busquei em meus trabalhos à óleo até a incursão pelos abstratos em 2012, a massa no caso das cerâmicas é dissociada do matiz cromático e da textura pictórica e assim a observação da imagem se dá pela diferença de luz nos volumes e reentrâncias das lajotas.

É uma técnica aprendida do artesanato nordestino – embora não sejam os únicos a se expressarem por placas volumétricas (até o pórtico da Catedral da Sé é assim, fundido em espessas placas de bronze) – discursando sobre uma narrativa ultrapassada de como um povo fazia para se assustar. É, portanto, um risco de transposição plástica da gravura e do desenho medieval para uma técnica que impõe limites e poéticas outras. É um proveito do reducionismo (de síntese imagética diferente) que a cerâmica provoca e nesse esforço inerente de síntese encontrar a representação do assustador.

Vivemos uma época da abolição dos monstros. Ao mesmo tempo que precisamos de novas experiências para excluir aquilo que nos aflige – viver, por exemplo, a melhor distribuição de renda – vivemos, também, com muitas problemáticas e problematizações para descontruir o ser humano moderno.

Dar voz e luz para uma campanha ultrapassada de falsidade é o jeito que encontrei de dar vazão ao fato de que precisamos enfrentar os enganos para vivenciar uma sociedade de construções e superações inéditas e verdadeiras. É um paralelismo de outra época com a cena contemporânea que habitará no coração de cada um, assim eu espero. E instigar: como atravessar os simbólicos oceanos que se apresentam diante de nós, com suas feras e perigos imaginários? A tecnologia superou barreiras de distância, agora, a distância maior é dentro de nós. É a piscina, ou seja, o “cérebro-oceano” quase da cor de massa encefálica que apresenta a distância entre os seres (ai incluídos, as esculturas planas afixadas nas paredes da piscina) e as pessoas (visitantes da exposição) sobre aquilo que causava aflição.

E assim estimular, por fim, que todos aqueles que carregam suas bandeiras do bem continuem fazendo com mais paixão. Pois a desconstrução da falsidade dos monstros (e das monstruosidades atuais) é a liberdade para verdadeiramente ir e vir. Fazer e acontecer. Mudar e consolidar.

Um mundo melhor é possível. As falsidades superadas sobre os monstros marítimos europeus são testemunhas disso.


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