Só a caixa
Por que Fernando atravessou a estrada?
Na rua Ministro Godói fica um parque, este, com muitos galos e galinhas. E as vezes alguns desses frangos atravessam a estrada... para fazer nada. Estava eu ali na mesma rua que de dia as galinhas dominam. Era noite e subindo a rua vejo um carro de papelão bem a frente tomar a esquina de acesso. Tchábum, cai uma caixa, que atrapalha o trânsito dos carros que vinham atrás. O carro de papelão seguiu adiante abandonando seu pertence. Como ponto de fuga, tomo a caixa em meu destino e, no meio dos carros, chego até aquela caixa. De papelão forte, me surpreendeu que a caixa era toda furadinha. Começava aí uma nova incidência poética.
Numa exposição do Projeto Vênus, chamada Matrioska, na Galeria Bergamin e Gomide, em 2020, várias artistas se utilizaram de caibros para fazer suas pinturas. Uma delas desenhou apenas olhos um em cima do outro. Outra juntou três caibros com espaçamentos e pintou uma cabra. E assim por diante. Pensei que aqueles caibros poderiam ser suportes para linhas das colagens que pratico desde 2012. Segue um exemplo:
Estudo de padrões 17 004
Colocar peças de plástico num caibro equivaleria a fabricar uma linha dessa colagem. A colagem tem níveis, tem camadas. Logo, luz e sombra incidem de maneiras diferentes conforme a luz do dia, ou do ambiente, a atravessam.
Mas apenas um caibro com peças coloridas não me bastaria. A ideia seria justamente dar dimensão a estrutura plana que já elaboro. É muito comum as pessoas se aproximarem das colagens planas para verem como é feita. Por que não inserir mais espaço no que é plano ou, ainda, aumentar a escala desse sistema para incluir o ser humano na fruição criativa desse processo?
Os caibros com peças coloridas num primeiro momento foram imaginados soltos numa sala, em diagonais. De modo que as pessoas teriam de desviar dos caibros nos ângulos mais próximos ao chão. Mas quando encontro a caixa furadinha na estrada, surge um plano matemático novo: furos paralelos. Aquilo definiu a exemplificação que fiz e por uma razão, começar pelo simples. Os furos paralelos me levaram a produzir uma maquete onde, no lugar dos caibros, utilizei varetas. Vazei um lado da caixa, que permaneceu com quatro lados fechados por papelão e dois lados abertos. Seguir as linhas latitudinais foi um paralelo as colagens planas já realizadas. Nestas, o ponto de vista muda a percepção do receptor da mensagem plástica. Na maquete, estabeleci 6 varas dispostas em alturas diferentes da base da caixa, em profundidades também diferentes. O ponto chave dessa maquete é que ela é muito semelhante as colagens planas sob hum ponto de vista, o de fachada. Seria necessário criar na sala onde seja instalado essa obra, uma espécie de andar onde o receptor da mensagem possa ver um panorama das linhas de peças sobrepostos de maneira convencional, isto é, de semelhança muito próxima à uma colagem plana. Vista de frente, a certa altura, as peças todas se encaixam em latitudes ordenadas de cima a baixo.
Bem diferente quando o receptor, ou receptora da mensagem desce do andar e começa a caminhar pela sala. Sua visão compreenderá que cada ângulo de seu caminhar produz uma obra diferente. Essa narrativa dos pontos de vista procura inserir o receptor nas dimensões de formação da imagem de uma obra de característica óptica. É uma espécie de exposição do enigma da obra, pois cada etapa sua é mostrada em partes.
Mas há outra potência nas colagens planas que pode ser explorada: a questão das sombras. As sombras naturalmente invadem e compõe e jogo de formações de matizes cromáticos das colagens planas. Na maquete, os furos da caixa - maiores que a espessura das varetas - ainda permitiram a incidência criativa de se adicionar focos de luzes. Na instalação real, adicionar janelas de luzes, ou spots, que acendem e apagam sozinhos, ou que acendem e apagam ao comando do receptor, fará com que a própria instalação tenha ativada e aumentada a natureza da obra de composição com as sombras, ou de transformar linhas de peças (os caibros) em vultos que evidenciam, assim, algumas cores frente outras. Podendo andar de trás para frente, o receptor verá composições únicas de cores, luz, sombras além da própria sombra. Ver a própria sombra num caminhar poético visual fará o ser humano ver sua silhueta como ativadora do conjunto da proposta.
Ir pelo simples, isto é, as varetas serem dispostas em linhas latitudinais em profundidades diferentes me deu a dimensão de que primeiro é suficiente estabelecer o diálogo entre as colagens planas, que já estão no imaginário de algumas pessoas, mas sobretudo de meu conjunto de trabalho, e o dimensionamento dessas colagens. Não só introduzir a pessoa humana no processo de percepção de trabalho é interesse mas também o objetivo de ampliar, estender o conceito de formação da obra que deixa de ser uma formação na retina mas passa a ser uma substância compartilhada.
O paralelo entre as colagens planas e a instalação podem ser melhorados com a criação de uma colagem plana de grandes dimensões nas mesmas cores da instalação. Essa obra seria instalada na parede oposta a fachada.
Foi deixada de lado, portanto, a proposta inicial de fazer caibros instalados em diagonais do teto ao chão. Ou encostados deste até às paredes. A similitude de raciocínios latitudinais entre a colagem plana e a instalação foi preferenciada.
Dimensão lúdica
Outra possibilidade que a caixa despertou foi de manter sua dimensão aos olhos do receptor da mensagem. A caixa teria de ser mostrada num púlpito ou mesa no centro de um salão para que se pudesse andar em torno dela e perceber-se, assim, a mutação de suas composições. Cezánne dizia que na natureza, cada ângulo de observação renderia um quadro novo. A percepção da caixa em 360 graus de ângulos possíveis, de cima a baixo, vem a dar total esclarecimento ao enigma de formação da imagem plana. Esse enigma, naturalmente, tem as luzes e sombras como elemento de transformação da perspectiva. Assim, a caixa projeto poderia ser igualmente furada com a adição de LEDs que conduzissem a um aumento da percepção de pontos de luz.
Mas outro interesse é que o receptor possa pegar essa caixa nas mãos e manuseá-la.
Assim, surge outra incidência criativa: fazer a caixa toda transparente. De modo que a realidade circundante atravesse as paredes da caixa e as varetas com peças coloridas faça parte do ambiente onde ela é colocada.
Há entraves técnicos: não dá para instalar LEDs numa caixa que vai ser manuseada. Ou ainda uma caixa toda feita de acrílico pode riscar com facilidade e, de vidro, é frágil e pesada. Bem, em condições ideais a caixa poderia ser feita toda de acrílico, colocada numa sala branca, num púlpito branco com feltro branco na base e luvas acessórias para o receptor a manusear e, bem, a iluminação seria externa e focal. A sala toda com luz rebaixada e um foco de luz nas peças.
Isso tudo são jeitos de colocar o receptor como participante do processo sensível que é observar uma obra de arte. O questionamento da observação como dependente da atitude do observador: seja de manuseio, seja de caminhar por uma sala, seja de acender e apagar luzes de potencialização da obra, isso tudo insere e aproxima as pessoas do artista, sem que sejam apresentados. Seria impossível fazer isso com um quadro de Henri Rosseau. O que se propõe é uma, talvez, nova concepção da obra como dimensão tangível daquilo que antes era compreensível apenas pela visão. O receptor como protagonista - no caso das caixas - ou participante - no caso das instalações - passa a ser parte da obra. Obra essa que existe isolada no mundo mas que, à presença do ser humano, é ativada.
Título das obras
No entanto as pessoas ainda se perguntam: o que é isso? Bem, o título do trabalho pode dar sugestões de leituras. O público talvez precise de um disparador. A arte abstrata ainda gera muitas dúvidas. E perguntar-se o que é isso não basta para boa parte dos receptores. A ressonância da dúvida, embora positiva, incomoda algumas pessoas. A resposta não vem e a insatisfação fica. Ter uma condução de raciocínio por parte do artista pode gerar mais estranheza. Mas o jogo de reflexões imagéticas que uma trabalho abstrato pode render me fez pensar em alguns títulos para as obras planas.
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